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Anencefalia e Antecipação de Parto

A legislação de Buenos Aires


Anencefalia e Antecipação de Parto

O progresso e o desenvolvimento da humanidade, em especial nas áreas das ciências biológicas e biomédicas, provocam uma preocupação geral quanto a questões individuais e coletivas que dizem respeito à convivência social. De todas as áreas, erguem-se vozes para sustentar a necessidade de que o procedimento do homem, em todas as suas atividades, deve ser ético, construtivo de uma sociedade mais justa e democrática.

Entretanto, uma questão só é eticamente significativa quando assim entendida pela maioria das pessoas. Assim, é óbvio que o desenvolvimento social, econômico e científico, dá nascedouro a diversas questões novas e eticamente significativas, na medida em que aumenta a velocidade e a grandeza do desenvolvimento, despertando a sociedade para o debate e a reflexão quanto às mesmas.

Nas palavras de VEATCH: “os problemas da medicina e das ciências biológicas têm explodido nos últimos anos, de modo exponencial, na consciência pública”.

Inserida nessa realidade, a bioética (como ética voltada à vida) ocupa espaço decisivo, buscando balizar o comportamento dos agentes envolvidos no processo, na medida em que não mais se pode admitir suas ações como fato isolado no microcosmo científico.

Neste contexto, várias questões pontuais exsurgem, dentre elas a interrupção da gravidez (aborto), cujas discussões quanto à legalização de sua prática retornam de forma recorrente, quer no âmbito nacional, quer no internacional, sublinhando-se os debates quanto ao direito de escolha das mulheres, bem como quanto à viabilidade do próprio feto em gestação.

Em junho de 2003, foi aprovado pela Legislatura da Cidade de Buenos Aires, capital da Argentina, projeto de lei (Despacho 2426-00, Expedientes 4087-D-01 e 0980-D-2002) que permite o “adiantamento do parto” de bebês que padecem de anencefalia ou outra patologia incompatível com a vida, intervenção esta que poderá ser feita nos hospitais públicos portenhos mediante pedido da gestante, com aval médico e após o sexto mês de gravidez (vinte e seis semanas).

O posicionamento da Legislatura de Buenos Aires reacendeu o debate, não só quanto ao aborto (“adiantamento do parto”, na expressão legislativa portenha), mas, em especial, no que diz respeito à condição dos fetos e bebês que padecem de anencefalia e direitos a serem protegidos.

O objetivo do presente é, justamente, levar a efeito uma apreciação do diploma legal referido, apresentando a caracterização da anencefalia, do ponto de vista biológico; a determinação da condição do anencéfalo, no que diz com o respeito a ele devido e os direitos daí decorrentes; a legislação em foco, bem como sua motivação; a posição contrária à permissão legal; e, por fim, o encaminhamento de uma conclua a propósito do tema.

Os limites deste trabalho não permitem o esgotamento da discussão, tampouco esta é a pretensão, não só pela grandeza, complexidade e passionalidade que a matéria envolve, mas pelo fato de que, conforme bem acentua ENGELHARDT, “Têm lugar central nas controvérsias em bioética e no campo da assistência médica, concepções conflitantes a respeito da propriedade moral do uso da vida humana em seus estágios iniciais para fins de pesquisa, da extração de células-tronco de embriões humanos e da interrupção do desenvolvimento de fetos por meio do aborto”, do que decorre a consequência lógica de que muito ainda há para ser dito e debatido.


Anencefalia – Caracterização

A anencefalia é uma alteração congênita da qual resulta a ausência dos dois hemisférios cerebrais e estrutura óssea do crânio, a situação é irreversível, entretanto, tal não equivale à morte cerebral.

Conforme PESSINI e BARCHIFONTAINE: “Não corresponde exatamente, no plano médico, à ‘morte cerebral’. O sinal inequívoco desta reside na constatação da ausência funcional total e definitiva do tronco cerebral. Ora, este está presente nos fetos anencéfalos e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de alguns dias fora do útero materno.”

Conforme SEBASTIANI, a anencefalia é a falta de desenvolvimento dos hemisférios cerebrais, do hipotálamo, o desenvolvimento incompleto da hipófise e do crânio, com as estruturas faciais alteradas que lhe dão uma aparência grotesca e anormalidades nas vértebras cervicais, existe a função do tronco encefálico que pode estimular vários reflexos, como as funções do coração e pulmões, por um período curto de tempo sendo que alguns anencéfalos apresentam ações de pressão, sucção, respondendo a estímulos dolorosos, ou seja, há um reflexo doloroso do tronco encefálico – este detalhe tem importância na medida em que identifica a existência de um arco reflexo intacto. A anencefalia é um tipo de defeito do tubo neural, assim como a espinha bífida – coluna vertebral aberta, apresentando um ou dois casos a cada mil nascimentos com vida.

Durante a gravidez o encéfalo e a coluna vertebral desenvolvem-se em forma de um prato plano de células que formará o referido tubo. Se este tubo não restar fechado totalmente, produz-se o chamado defeito de tubo neural aberto (ONTD – sua sigla em inglês), sendo possível que esta abertura fique exposta (80% dos casos) ou que seja coberta por ossos e pele (20% dos casos).

Os casos de ONTD mais frequentes, entre eles a anencefalia, em mais de 90% dos casos, têm origem em casais sem histórico familiar relacionado ao problema. Estas anomalias resultam de uma combinação de gens herdados de ambos os pais, somada a diversos fatores ambientais, daí porque são consideradas de risco hereditário multifatorial, ou seja, vários fatores, genéticos e ambientais, contribuem para sua incidência. Entre alguns dos fatores ambientais, pode-se incluir uma diabetes não controlada na mãe ou o uso de medicamentos controlados, por exemplo. Estas anomalias congênitas se manifestam com uma frequência cinco vezes maior nas mulheres do que nos homens, sendo que, nascido um bebê com ONTD em uma família, a possibilidade de recorrência aumenta de 3 a 5%, sendo relevante notar que o tipo de anomalia pode ser outro.

O diagnóstico pré-natal é possível, possibilitado o acompanhamento visual de parte do desenvolvimento intrauterino a partir de cinco semanas de gestação (após a data da última menstruação) através da ultrassonografia, a qual funciona segundo o mesmo princípio de um sonar (ondas refletidas pela estrutura do feto são captadas, formando sua imagem). Além da ultrassonografia, outros exames também são levados a efeito para detectar a ocorrência da anencefalia, ressaltando-se, em especial: alfafetoproteína (proteína produzida pelo feto, que é eliminada no líquido amniótico, podendo níveis anormais desta indicar a existência de defeitos encefálicos ou na medula espinhal, fetos múltiplos, erro no cálculo da data do parto ou transtornos cromossômicos) e amniocentese (exame para determinar existência de transtornos cromossômicos e genéticos, além de defeitos congênitos, consistente em inserir uma agulha através da parede abdominal e uterina até o saco amniótico para tomar uma amostra do líquido amniótico). Inexiste tratamento para a anencefalia, havendo apenas tratamento preventivo, que consiste na administração de ácido fólico às mulheres com histórico relacionado ao problema, ainda antes de engravidar. Devido à falta de desenvolvimento do encéfalo, aproximadamente 75% dos bebês nascem mortos e o restante não consegue sobreviver mais que horas, dias ou semanas.

As opções de aborto e parto prematuro induzido em relação a estes bebês, na maior parte das vezes, vêm defendidas a partir da consideração de que os anencéfalos não são seres “viáveis” (“viabilidade” é a idade gestacional na qual um feto pode sobreviver fora do útero mediante tratamento – cerca de 23 a 24 semanas).

Diante da impossibilidade de tratamento da anencefalia, bem como frente ao curto prazo de vida dos bebês, surge a defesa da interrupção da gravidez ou indução ao parto prematuro em tais casos. Diante desta realidade, necessário apreciar a condição do bebê anencéfalo com o intuito de precisar a consideração que lhe é devida do ponto de vista ético-jurídico e os direitos que lhe cabem, por consequência. Nesta perspectiva, emerge a discussão sobre a condição do feto, ou bebê, anencéfalo e que consideração deve ser a ele deferida.


Bebês Anencéfalos

As questões éticas mais relevantes, no que diz respeito aos anencéfalos dizem respeito ao aborto, indução de parto prematuro, alocação de recursos para assistência pós-natal e doação de órgãos para transplantes, sendo que qualquer avaliação das mesmas passa, necessariamente, pela consideração da humanidade dos bebês. Na busca desse objetivo, bem como considerando os limites traçados para este trabalho, aborto/indução/adiantamento de parto de anencéfalos, pertine analisar a questão da personalidade e dos direitos do embrião.

Embora se afirme que o embrião ainda não é uma pessoa humana, no sentido pleno da expressão, como também não é o recém-nascido ou criança antes do uso da razão, é inegável que se trata de um “vivente” humano, eis que sua vida está programada para ser humana e desenvolver-se como tal.

Nas palavras de JUNGES: “... pode-se dizer que o embrião, desde o primeiro momento, tem personeidade (estruturas antropológicas para tornar-se pessoa), mas ainda não pessoalidade (as estruturas ainda não foram levadas à expressão quanto ao sujeito). Em outras palavras, já estruturalmente pessoa, embora não o seja atualizadamente, porque a estrutura pessoal ainda não se desenvolveu plenamente, mas está programado para isso.”

SERRÃO aponta três concepções principais no que se refere ao embrião humano: a primeira, similar à posição de JUNGES, no sentido de que se trata de um membro da família humana na primeira fase do seu ciclo vital e que chegará ao estado de pessoa; a segunda indicando que se trata apenas de um pouco de tecido, um aglomerado de células; e, por fim, a terceira, apontando que, satisfeitas determinadas condições, pode se desenvolver até ser humano, merecendo proteção de acordo com a fase de desenvolvimento em que se encontre.

Consoante JUNGES, a defesa do respeito absoluto ao embrião não está no fato de ser pessoa, pois para tanto lhe faltariam requisitos, mas na sua “ascrição” ao gênero humano, na solidariedade ontológica de todos os seres humanos.

Sobre “ascrição”, esclarece LEPARGNEUR: “’Pessoa’, resumidamente, é o indivíduo consciente, dotado de corpo, razão e vontade, autônomo e responsável. Salientamos a autonomia da pessoa como sujeito moral, porque aqui enxerta-se toda a tradição kantiana, ainda hoje importante na dinâmica do desenvolvimento da conscientização dos direitos humanos. É óbvio que, nem o embrião, nem sequer o feto, nem o louco que perdeu, de vez, o uso da razão e do juízo, nem o comatoso em fase final, responde a esta definição da pessoa. Então a pergunta é: em virtude de que podemos atribuir dignidade pessoal a estes seres que não se enquadram na definição comum e admitida de pessoa? A resposta da ciência atual é: pela ‘ascrição’, isto é, pela atribuição de certa dignidade pessoal, outorgada criteriosamente, a seres que julgamos merecedores dela, pela proximidade que intuímos desfrutar conosco, apesar de eles não satisfazerem os critérios da definição clássica da pessoa, sujeito racional, livrem autônomo e responsável. A ‘ascrição’ não resulta de uma decisão individual, mas de um juízo comunitário, cultural (do ethos), que admite o mais ou menos, porque toda participação admite o mais ou menos.”

A solidariedade ontológica dos seres humanos se baseia na identidade de espécie, ou seja, seres humanos são gerados por seres humanos sexualmente diferenciados, havendo uma herança genética, relacional e cultural, a ser preservada e atualizada, que imbrica uma dívida de cada ser humano com os seus semelhantes. Dívida esta que aponta para o fato de que o desrespeito ao semelhante é desrespeito a si mesmo.

De outro lado, a genética moderna veio a demonstrar que todas as células somáticas (como o próprio nome dá conta, constituem o “soma”, o corpo), sem nenhuma exceção, possuem o mesmo genótipo, têm a mesma informação genética. Assim, qualquer célula humana contém todo o DNA responsável pelo desenvolvimento do ser humano.

Demonstrado que o genótipo presente nas células somáticas é o mesmo presente no zigoto, evidencia-se não existirem diferenças genéticas entre o recém-concebido e o adulto, o que vem em reforço da referida identidade ontológica existente entre os seres humanos.

A posição de LEJEUNE é ainda mais incisiva, no mesmo sentido, v.g.: “No princípio do ser há uma mensagem, essa mensagem contém a vida e essa mensagem é a vida. E se essa mensagem é uma mensagem humana, essa vida é uma vida humana.”

De outro lado, há entendimentos em frontal antagonismo com o exposto, como se pode ver pelas posições expressas por SINGER, v.g.: “Se considerarmos ‘humano’ equivalente a ‘pessoa’, então a segunda premissa do argumento, que afirma que o feto é um ser humano, é claramente falsa, pois ninguém poderá argumentar, de forma plausível, que o feto seja racional ou autoconsciente. Se, por outro lado, o significado de ‘humano’ for apenas ‘membro da espécie Homo sapiens’, então a defesa conservadora da vida do feto se baseia numa característica desprovida de significação moral e, assim sendo, a primeira premissa é falsa. A questão já deveria a essa altura parecer-nos familiar: em si mesmo, o fato de um indivíduo ser, ou não, um membro da nossa espécie, não é mais relevante, diante do erro de matá-lo, do que o fato de ser ele, ou não, um membro de nossa raça.”

Em relação a ser o feto um ser humano em potencialidade, SINGER oferece exemplos que afastariam essa possibilidade, tais como: “arrancar uma muda de carvalho recém-brotada não é o mesmo que abater um venerável carvalho secular. Jogar uma galinha viva dentro de uma panela de água fervendo seria muito pior do que fazer a mesma coisa com um ovo.”

Conforme AZEVEDO, Warnock estabeleceu distinção entre seres agentes ou responsáveis pela moralidade e os seres beneficiários desta, sendo que, considerados pessoas apenas os primeiros, isso implica que por pessoas seriam considerados aqueles que desenvolveram maturidade suficiente para serem responsáveis por seus atos e pelos demais; considerados, ao revés, os segundos, a questão está em definir se há diferenças de valor moral, ou não, entre eles.

Do exposto, caracteriza-se o embrião como um ser humano, e mais ainda o bebê anencéfalo, uma vez que este é gerado por pais humanos, possui genoma completo, funcionando como organismo integrado à mãe, exibindo, após o nascimento, comportamentos físicos típicos de um recém-nascido, ressaltando-se, ainda, que, conforme lição já reproduzida de PESSINI e BARCHIFONTAINE, sua situação não se confunde com a de morte encefálica.


A legislação portenha

O projeto de lei aprovado pela Legislatura da Cidade Autônoma de Buenos Aires, conforme a fundamentação (“considerandos”) da Comissão de Saúde, tem uma série de justificativas para sua edição.

Aponta-se um “importante número” de mulheres grávidas de fetos anencéfalos que, desde o último trimestre de 2000, recorreram aos Tribunais de Buenos Aires buscando o “adiantamento do parto”, sendo que os sucessivos processos judiciais têm origem em precedente jurisprudencial (caso “S.T.”), em que tanto o Tribunal Superior de Justiça local, como a Corte Suprema de Justiça da Nação, avaliaram regras constitucionais relativas à vida, à saúde física e psíquica, à proteção integral à família, e regras penais que proíbem o aborto e suas consequências.

No referido julgamento, em seu voto, o Dr. JULIO MAIER, membro do referido Tribunal Superior de Justiça, sustenta: “La razón de ser de la falta de ejecución de la solución diagnosticada consiste, precisamente, en la perplejidad de los médicos frente a las reglas jurídicas que rigen el caso, que – es cierto – no permiten una definición concreta sencilla desde el punto de vista del orden jurídico... ya por oscuridad de la ley, ya por falta de previsión concreta (laguna), ya porque la praxis judicial no alcanza el grado de generalidad y aceptación que permitiría develar la interpretación correcta del caso frente al orden jurídico.”

Afirma-se que a práxis judicial aponta no sentido de que a prática regulada pela norma qu não é abortiva e, assim, não entra em confronto com a tutela do direito à vida desde a concepção, estabelecida no artigo 2o da lei aprovatória da Convenção dos Direitos da Criança e no artigo 4o do Pacto de São José da Costa Rica, pelo fato de que apenas se possibilita o adiantamento do parto em um momento em que o nascituro, se não sofresse de uma patologia letal, alcançaria viabilidade. De outro lado, as questões relativas à integridade da saúde da mãe, em sua totalidade, que seria prejudicada pela gravidez de um feto inviável (com danos psíquicos, em especial), protegida pela legislação da cidade autônoma e do País, bem como por Tratados Internacionais, devem ser levadas em conta, o que permite a regulamentação em pauta.

Ressalta-se que, aos argumentos referidos, deve ser somado o fato de que os profissionais da medicina seriam beneficiados, na medida em que não estariam sujeitos a reiterados processos judiciais, sem embaraços ao desenvolvimento de suas atividades profissionais, o que provoca o seu apoio à norma.

Por fim, as mulheres grávidas de um ser inviável reclamam a sanção da lei, que evita que sejam obrigadas a expor sua dor em juízo, podendo “chorar recolhidamente esse projeto de filho que não será”.

O artigo primeiro da lei começa indicando o seu objeto, qual seja, regular o estabelecido pela Lei 153, o procedimento nos estabelecimentos assistenciais do sistema de saúde da Cidade Autônoma de Buenos Aires, a respeito de toda a mulher grávida de um feto que padeça de anencefalia ou outra patologia incompatível com a vida. A seguir, dispõe sobre feto inviável, para fins de aplicação da norma (artigo 2º).

No artigo 3º, dispõe sobre o diagnóstico, estabelecendo que a incompatibilidade com a vida extrauterina deve ser comprovada pelo médico responsável pelo tratamento da gestante, mediante realização de duas ecografias obstétricas, nas quais deverá constar a identificação da gestante (documental ou digital). Prevê a norma que, dentro das 72 horas seguintes à confirmação da incompatibilidade com a vida do produto da gestação, o médico está obrigado a informar à gestante, explicando-lhe, de forma clara e de acordo com sua capacidade de compreensão, o diagnóstico e o prognóstico da patologia que afeta o feto, a possibilidade de continuar ou interromper a gravidez e as consequências da decisão que adotará (essas providências devem constar expressamente no histórico clínico da paciente).

Para o adiantamento do parto, caso essa seja a opção, três requisitos indispensáveis devem ser atendidos, conforme o artigo 6º: O primeiro diz respeito à existência de certidão de inviabilidade do feto, registrada no histórico clínico da gestante, firmada pelo médico da mulher grávida, pelo médico responsável pela ecografia e pelo diretor do estabelecimento assistencial. O segundo requisito é o consentimento informado da paciente grávida, na forma prescrita em lei (Decreto 208/01). Por fim, é necessário que o feto tenha alcançado 24 semanas de idade gestacional ou a idade mínima na qual se registra viabilidade em fetos, intrínseca ou potencialmente sãos.

Finalmente, entre outras medidas tendentes a dar execução ao diploma legal, determina-se que, em caso de objeção de consciência, por parte dos médicos que integram o sistema de saúde, deve ser providenciada a substituição, a fim de que possa ser levado a termo o adiantamento do parto.

Das discussões na Legislatura de Buenos Aires, destaca-se a manifestação dos autores do projeto, Deputada Marcela Larrosa e Deputado Eduardo Peduto, no sentido de que “a legislação destina-se às mulheres que sabendo que seu filho não poderá viver fora de seu ventre, decidem não retardar mais o momento de sua morte. E necessitam desta lei para não precisarem recorrer à Justiça.”.

A seu turno, a Deputada Clori Yelicic, contrapôs-se às objeções lançadas contra o projeto, durante sua votação, nos seguintes termos: “Não estamos falando de aborto. Quando o fizermos, será claramente. Falamos do adiantamento do momento do parto de fetos que carecem de toda expectativa de vida fora do útero materno.”

Resta evidente que a legislação em apreço privilegia a saúde da mãe, tanto no aspecto psíquico como no social, sua autonomia, considerando-se que não há razão para levar a termo uma gestação de um feto que carece de viabilidade. Assim se dá a partir da perspectiva de que a morte do nascituro é a única alternativa possível e esperada, permitindo-se adiantar o parto ou o marco do permitir morrer.


Objeções à lei

O deputado Ricardo Busacca, 3o Vice-Presidente da Legislatura de Buenos Aires, sobre o referido Projeto de Lei, afirmou: “Creemos Que Una Ley Como Ésta Debe Ponderar El Papel De Todas Las Personas Que Pueden Estar Involucradas En El Embarazo De Una Mujer, Esto Es Al Hijo Que Lleva En Su Seno, Al Padre, Abuelos, Y Todos Los Entes Del Estado Que Procuran O Velan Por La Protección De Los Niños.

“No tenemos que caer en el pecado de intentar regular las patologias sociales, el primer y único fin de una ley es erradicar de algún modo los males de una sociedad, no es bueno que la norma persiga por objeto reconocer determinado hecho y regularlo, antes que esto es necesario un análisis axiológico de los hechos y luego estudiar, cómo será la aplicación de la norma en la sociedad, esto es el análisis sociológico de la norma.

Por lo tanto, dado que la misma no contempla la opinión del padre y lo que es aún más grave: Qué sucederia en el caso de una mujer menor de edad embarazada?, queremos decir lo seguiente: En ésta ley no se le da la posibilidad a aquella persona que tenga un interés legitimo a, por lo menos emitir opinión al respecto, por ejemplo no se le otorga intervención al Ministerio Publico de Menores, tampoco al Consejo del Menor y la Familia.”

Aqui, já a primeira objeção, qual seja, a lei não leva em consideração a opinião sobre o fato – pedido de adiantamento do parto, nascimento de um bebê anencéfalo – de outras pessoas envolvidas na situação, em especial do “pai” do feto (seja cônjuge, companheiro ou parceiro da gestante), tampouco a capacidade da gestante, como se a questão se restringisse à percepção e decisão da mulher grávida de um anencéfalo, o que, por si só, abala sua saúde psíquica, prejudicando sua autonomia e possibilidade de discernimento para fins de consentimento informado. Sendo de considerar, também, como apontado pelo Deputado portenho, a hipótese de falta de capacidade da gestante, do ponto de vista legal, que não foi considerado para fins de consentimento.

De outra parte, a Deputada Alicia Pierini, Presidente da Comissão Parlamentar de Direitos Humanos, Garantias e Antidiscriminação, solicitou agregar a convalidação do Comitê de Ética da instituição hospitalar, uma vez que “se existe em cada hospital um Comitê de Ética, não se compreende porque justamente em relação a este tema, tão controvertido, não lhe seja dada vista em cada caso, para manifestação”.

Efetivamente, não se vislumbra razão objetiva para que não se busque a manifestação do Comitê de Ética do hospital, quando existente, nos casos em questão, concentrando-se, na prática, a condução do processo decisório na mão de um só profissional médico, aquele que acompanha a gestante durante a gravidez, quando poder-se-ia obter opiniões e considerações de profissionais de outras áreas que compõem o Comitê, bem como de médicos não envolvidos pessoalmente com o caso específico e seus desdobramentos, o que pode propiciar uma análise mais abrangente e imparcial.

Embora as objeções antes referidas sejam, sem sombra de dúvida, relevantes, o ponto que desperta maiores discussões, tomando a posição central nas mesmas, diz respeito a tratar-se, ou não, o anencéfalo, de um ser com direito à vida.

Este foi o ponto central da discussão julgamento do recurso de amparo interposto por S.T., junto à Corte Suprema de Justiça da Nação (Argentina), para que fosse autorizado o Hospital Materno Infantil Ramón Sardá a pôr fim à gestação de um feto anencéfalo, julgado em 2001.

O Presidente da Corte Suprema, JULIO S. NAZARENO, quando daquele julgamento, ressaltou, em seu voto (dissidente), que a proteção legal da pessoa humana começa desde a concepção, a partir da combinação do disposto no art. 75, inc. 23, da Constituição da Nação Argentina, com o art. 4.1 do Pacto de São José da Costa Rica, e com a Convenção sobre os Direitos das Crianças, art. 6.1 e 2.

Prevêem, os mencionados dispositivos: “Art. 75 – Corresponde al Congresso: 23 – Legislar y promover medidas de acción positiva que garanticen la igualdad real de oportunidades y trato, y el pleno goce y ejercicio de los derechos reconocidos por esta Constitución y por los tratados internacionales vigentes sobre derechos humanos, en particular respecto de los niños, las mujeres, los ancianos y las personas com discapacidad.

Dictar un régimen de seguridad social especial e integral en protección del niño en situación de desamparo, desde el embarazo hasta la finalización del período de enseñanza elemental, y de la madre durante el embarazo y el tiempo de lactancia.”

Art. 4.1. – Toda persona tiene derecho a que se repete su vida. Este derecho estara protegido por la ley y, en general, a partir del momento de la concepción. Nadie pude sere privado de la vida arbitrariamente.”

Art. 6.1 – Los Estados Partes reconocen que todo niño tiene el derecho intrínseco a la vida.”

Para o magistrado argentino, resta claro que se trata de uma pessoa desde a concepção, no seio materno, sempre que se tenham sinais característicos de humanidade. Ressalta, à fl. 31, que o DNA humano, o genoma humano, identifica uma pessoa pertencente ao gênero humano e, portanto, constitui um signo “característico” e irredutível de humanidade, o que leva à adoção de medidas tendentes à proteção da dignidade do próprio genoma humano, inclusive através da Declaração Universal sobre o Genoma Humano.

Ante estas ponderações, estariam afastadas eventuais dúvidas sobre o caráter de pessoa humana do ser que habita o ventre materno.

Além disso, no caso concreto, a ecografia levada a efeito, revela a existência de um processo vital em desenvolvimento, com resultados que dão conta da normalidade da cinética cardíaca, movimentos fetais, ao mesmo tempo em que informa sobre a adequação do líquido amniótico para a idade gestacional.

Permita-se a reprodução de parte do raciocínio desenvolvido no voto, sobre o ponto: “De ello se desprende que el individuo tiene vida y cumple com un proceso de gestación afectado por la patologia que padece, pues ‘al carecer de cerebro y de todas las estructuras que de él dependen no podrá susbsistir com autonomía’ I(expresiones del doctor Illia, fs. 59 vta. Cit.). En esta materia es preciso tener en cuenta la opinión de especialistas respecto de la anencefalia quienes sostienen que ella ‘es una alteración congénita de la que resulta la ausencia de hemisferios cerebrales y estructura ósea del cráneo... se produce en la instancia de cierre de la porción superior del tubo neural motivando la ausencia o destrucción del cerebro que es sustituido por una masa rudimentaria de tejido mesenquimático y ectodérmico...El proceso patológico se inicia tempranamente entre los dias 17 y 23 del desarrollo fetal’ (‘Obstetricia y Ginecologia Latinoamericanas’ no. 4, año 1988, vol 56, año 56, pág. 232, primera columna, el subrayada no pertenece al original); en sentido análogo, los expertos en genética clínica ubican a la anencefalia entre los desórdenes diagnosticables prenatales que se presentan en el segundo trimestre de la gestación.” (conf. Chieri Primadora, op. cit. págs. 364 y 365).

Es decir, que la patologia es ulterior a la concepción, esto es, posterior al momentoen que há comenzado a exisitir la persona, de lo que se deduce que el organismo vivente en cuestión es una persona por nacer que padece un’accidente’ (AGREGADO) (art. 51 del Código Civil) – la anencefalia – que no altera su condición (artt. 63 del cód. Cit.). Há de entenderse, entonces, que la inexistencia o malformación del cerebro humano no transforma las personas en productos ‘subhumanos’ como sugere el a quo (ver fs. 192, último párrafo y 193); en efecto, tal como lo expresó en su oportunidad uno de los juristas más sobresalientes del país que integró este Tribunal: una conclusión semejante parte de una premisa materialista no declarada: la que ‘afirma que nada hay en el mundo que no sea materia o que no dependa de la materia’por lo que ‘El espíritu mismo no seria sino la parte del alma que piensa, la qual se halla asentada en el cerebro: ‘el cerebro segrega pensamientos como el hígado segrega bíllis’, proclamaba Condillac, un eminete filósofo materialista del siglo XVIII. El hombre, en suma, es solamente un animal que, por evolución, há perdido o debilitado algunos de sus instintos... Los actos humanos, como los hechos de los animales, no son libres: el libre arbitrio, o sea, la supuesta libertad humana, es una ilusión. El bien y el mal que realizamos no son frutos visibles de virtudes y vicios, sino consecuencias del estado fisico de salud o enfermedad...La concepción materialista sitúa al hombre, sin reserva alguna, en la escala zoológica, simplemente como un animal más evolucionado que sus hermanos inferiores’ lo que es ‘repugnante a cualquier dctrina, religiosa o filosófica, del hombre como ser espeiritual’(conf. Orgaz, Alfredo, disertación pronunciada el 17 de abril de 1977 publicada en el libro ‘Las Personas Humanas Esencia y Existencia’ en el que se recopilan escritos e conferencias del jurista citado bajo la dirección de Matilde Zavala de Gonzalez, Hamurabi, José Luis Depalma Editor, 2000, págs. 62 y 63). Llama la atención que estas palabras – que contribuyen a refutar los argumentos del a quo se examinan – pertenezcan a uno de los autores que más firmemente creía en que la persona humana comienza com el nacimiento y no com la concepción (ver su crítica al art. 70 del Código Civil en su obra ‘Derecho Civil Argentino, Personas Individuales’, Editorial Depalma, 1946 págs. 31 y sgtes., en particular, pág. 34, punto 3).”

Mas o questionamento que, reiteradamente, tem sido apresentado nos casos de gravidez de anencéfalo diz respeito ao direito à vida, deste, no ventre de sua mãe, uma vez que, conforme diagnósticos médicos, a morte do nascituro é certa após o parto.

No caso da Argentina, necessário notar a aplicação dos dispositivos constitucionais e de tratados internacionais anteriormente reproduzidos, sublinhando-se que ao ratificar a Convenção sobre os Direitos da Criança, foi lançada reserva nos seguintes termos: “Al ratificar la convención, deberan formularse las seguientes reservas y declaraciones: ...Com relación al art. 1o de la convención sobre los derecho del niño, la República Argentina declara que se entiende por niño todo ser humano desde el momento de su concepción y hasta los 18 años de edad.”

Diante do exposto, o status de pessoa humana é conferido desde a concepção, a vida resta protegida, sem qualquer distinção ou exceção, do que emerge o respectivo direito à sua proteção.

Poder-se-ia alegar que essa afirmação só se manteria hígida nos termos da legislação argentina, entretanto, esta conclusão pode ser combatida sob a consideração de que, ao negar o direito à vida a quem sofra de qualquer patologia física que inviabilize a perspectiva de uma longa existência, aqui não considerado o nascituro, estar-se-ia a ofender o princípio da igualdade entre as pessoas, plenamente aceito e adotado, de vez que “expectativa” de vida não é “certeza” de vida, mas probabilidade, tão-somente. Nessa ótica, o “adiantamento do parto” seria, em verdade, uma antecipação da morte, a possibilidade de abreviar uma vida, o que não se justifica sob a consideração de que essa existência será curta.

Note-se que, ao buscar-se “adiantar o parto”, está-se, ao fim, reconhecendo a existência de um ser humano, de um nascituro, não se trata, de modo algum, de mães transformadas em “féretros ambulantes”, como entendem alguns.


Considerações finais

Primeiramente, cumpre destacar, uma certa perplexidade ante a aprovação do diploma legal, a partir da consideração de que a Argentina tem como religião oficial o catolicismo, que se opõe às práticas autorizadas naquele.

Quanto ao tema, propriamente, propõe-se algumas reflexões: Sendo o anencéfalo fruto de uma fecundação humana, com código genético e DNA humano, completos, que desde a concepção está dirigido por um princípio vital próprio, não há como opor dúvidas ao fato de se estar frente a um ser da espécie humana, que deve ser respeitado como os demais.

O fato de o feto sofrer de uma patologia grave, que prejudica sua viabilidade, não lhe retira a dignidade inerente aos seres humanos, tampouco o torna desprezível, mas, ao contrário, sua debilidade e fragilidade, inspira a dedicação de cuidado e proteção especial, de acordo com os males que lhe afligem, diagnóstico e prognóstico feitos, de acordo com o princípio de não discriminação inerente às relações entre os homens.

Sem dúvida, a mãe e o pai (que não é objeto de qualquer preocupação ou consideração no diploma legal em questão) de um nascituro anencéfalo, merecem atenção e acompanhamento especial, pois evidente o prejuízo psicológico, emocional e afetivo, a que são submetidos, a fim de que possam superar esse momento de dor.

Nesta perspectiva, há uma grave falha no projeto de lei aprovado, pois não é determinada atenção pós-parto, no caso adiantamento, sendo inafastável que se trata de uma situação traumática, que não será simplesmente eliminada com a intervenção cirúrgica.

De outro lado, não parece adequado, simplesmente, determinar em uma lei, pontual, o procedimento médico a ser adotado nos casos discutidos, pois está-se diante do tratamento de dois pacientes (mãe e filho), em situação especial e específica, que exige ponderações no campo da bioética, espaço apropriado para discussões ante a sua multidisciplinariedade. A dimensão ética do ser humano se constitui pelo sentido de sua existência, pelo conteúdo que orienta suas ações, ou, dito de outra forma, pelo seu valor e o valor de seus atos, pela sua responsabilidade em relação a si mesmo e relativamente à humanidade como um todo. A simples positivação não garante o valor intrínseco do ser humano, muitas vezes, ao contrário, legitima ações devastadoras contra este.

Como comprovação da insuficiência da positivação, no caso específico, aponta-se o fato de que não há qualquer preocupação em ouvir a opinião do pai do nascituro quanto à intervenção médica a ser levada a efeito, tampouco é prevista a oitiva do Comitê de Ética do hospital sobre o caso.

Para que o adiantamento do parto seja considerado de forma única e taxativa a indicação terapêutica apropriada, ante as patologias que acometem o feto, há de se considerar a questão sob três dimensões: médica, antropológica e ética; estas devem encontrar-se em um processo dialógico e conexo, de modo a permitir aos envolvidos o exercício de sua liberdade com responsabilidade, sem a influência de uma determinação legislativa estrita.

Por fim, não se pode olvidar que, diante dos grandes desafios bioéticos emergentes, consubstanciados em situações especialíssimas e específicas, meras respostas de cunho médico ou justificações legislativas, por si só, não atendem às peculiaridades dos conflitos éticos e humanos que se apresentam, sendo necessário ampliar o âmbito das discussões e apreciações a serem feitas.


Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. I N.º 11 edição de maio de 2022 – ISSN 2764-3867




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