A reedição do Plano Cohen em 2023
- Mauricio Motta
- 12 de mar.
- 7 min de leitura

A história brasileira é marcada por momentos em que a manipulação de informações e a criação de narrativas falsas causaram danos graves e duradouros ao país. O Plano Cohen, uma fraude arquitetada em 1937 durante o governo de Getúlio Vargas, é um exemplo emblemático disso. Esse suposto plano comunista, que nunca existiu, foi utilizado como pretexto para a instauração do Estado Novo, uma ditadura que perdurou até 1945. Quase um século depois, os eventos ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023, também envoltos em narrativas distorcidas e acusações de tentativa de golpe, levantam preocupações sobre a possibilidade de um novo ciclo autoritário no país. Este artigo busca traçar um paralelo entre esses dois momentos históricos, analisando como a manipulação de fatos pode abrir caminho para a erosão da democracia.
Em setembro de 1937, o governo de Getúlio Vargas anunciou a descoberta de um suposto plano comunista, batizado de Plano Cohen, que previa a derrubada do governo por meio de greves, incêndios e assassinatos de autoridades. O documento, apresentado como uma ameaça iminente, foi divulgado pelo general Góis Monteiro na edição de 30 de setembro do programa de rádio Hora do Brasil, gerando pânico na população e justificando a decretação do estado de guerra.
No entanto, o Plano Cohen era uma fraude. Ele havia sido elaborado pelo capitão Olímpio Mourão Filho, membro da Ação Integralista Brasileira (AIB), como um exercício teórico para simular uma insurreição comunista. A cúpula militar, no entanto, utilizou o documento para legitimar o golpe de Estado que instaurou o Estado Novo em 10 de novembro de 1937. O Congresso foi fechado, os partidos políticos foram extintos, e Vargas concentrou poderes absolutos, governando sob uma Constituição autoritária, outorgada por ele no mesmo dia em que instaurou o Estado Novo. Essa constituição, conhecida como “Polaca” por sua inspiração no modelo semifascista polonês, foi elaborada pelo jurista Francisco Campos e marcou o início de um regime autoritário no Brasil. Ela concentrou amplos poderes nas mãos do presidente, extinguiu o Legislativo, suspendeu direitos individuais e estabeleceu um governo centralizado e ditatorial, que durou até 1945.
A farsa só foi revelada em 1945, quando o Estado Novo já estava em crise. Góis Monteiro admitiu que o Plano Cohen era falso, mas o estrago já estava feito: o Brasil havia vivido oito anos sob uma ditadura que restringiu liberdades individuais e consolidou o autoritarismo como uma ferramenta política.
Na ausência de recursos de mídia descentralizada como temos na atualidade, a população contava com meios de informação de massa, como o rádio e os jornais. As informações circulavam de forma muito mais lenta, o que facilitava a manipulação e adulteração dos fatos.
Quase 90 anos depois, o Brasil se viu diante de outro evento marcado por narrativas controversas. No dia 8 de janeiro de 2023, manifestantes invadiram e depredaram os prédios dos Três Poderes em Brasília, supostamente em protesto contra o resultado das eleições presidenciais de 2022. O episódio foi rapidamente classificado como uma tentativa de golpe de Estado, com ampla cobertura midiática e repercussão internacional.
Naquele momento, o Brasil já testemunhava o avanço de arbitrariedades e excrescências judiciais que visavam dirigir a política e a sociedade brasileira. A marcha rumo à regulamentação das redes sociais, que representavam e representam um forte entrave à manipulação e adulteração dos fatos, carecia de um alicerce legal, ainda que aparentemente os responsáveis pelas ditas excrescências não demonstrassem precisar de qualquer respaldo para seguir na desconstrução da democracia que alegavam defender.
Uma crise provocada por uma tentativa de golpe de estado seria tão útil quanto qualquer documento redigido a título de exercício teórico na era Vargas.
No entanto, diferentemente do Plano Cohen, surgiram questionamentos sobre a veracidade das acusações. Alguns analistas argumentaram que os eventos foram inflados para justificar medidas autoritárias, como a intervenção no Distrito Federal e a criminalização de movimentos políticos opositores. A narrativa de uma “ameaça à democracia” estaria sendo utilizada para fortalecer o aparato de segurança do Estado e justificar a supressão de direitos civis. Tudo isso com forte suporte midiático.
Os paralelos entre o Plano Cohen e o 8 de janeiro são evidentes. Em ambos os casos, uma narrativa falsa ou distorcida foi utilizada para criar um clima de medo e justificar a concentração de poderes. Até mesmo a utilização de documentos para dar base concreta aos planos aproxima os dois eventos históricos. Nas páginas do Plano Cohen e na suposta “Minuta do Golpe” encontrada em 2023, revela-se um padrão: a utilização de documentos falsos ou distorcidos para justificar medidas excepcionais. Ambos os casos destacam como a manipulação de informações pode abrir caminho para a erosão da democracia, reforçando a necessidade de vigilância constante contra estratégias autoritárias. No período de Vargas, a suposta ameaça comunista serviu para legitimar o fechamento do Congresso e a instauração de uma ditadura. Já em 2023, a acusação de tentativa de Golpe de Estado pode ser utilizada para ampliar o controle do próprio Estado sobre a sociedade e silenciar vozes dissidentes, mediante a regulamentação das redes sociais e, quem sabe, outras medidas mais contundentes de aprofundamento de um novo “Estado Novo”.
Outro ponto em comum é o papel das Forças Armadas e de segurança. No Plano Cohen, a cúpula militar foi fundamental para a divulgação da fraude e a execução do golpe. Em 2023, a anuência das forças de segurança e a desmilitarização das áreas de segurança estratégica no entorno dos prédios da Esplanada, STF e Palácio do Planalto, facilitaram muito a ação de pequenos grupos infiltrados que, tendo invadido as dependências, dirigiram a massa de manifestantes incautos e curiosos.
Os relatos sobre infiltrados que agiram para provocar um “estouro da boiada” durante os eventos de 8 de janeiro em Brasília, ganharam força entre apoiadores de Jair Bolsonaro e analistas políticos. Não apenas relatos de testemunhas, mas alguns vídeos que puderam ser salvos da misteriosa “perda acidental” das imagens daquele dia, mostram cenas de um verdadeiro tour guiado pelas dependências dos prédios. Outros vídeos e depoimentos divulgados nas redes sociais mostram manifestantes tentando impedir pessoas de depredar o patrimônio público, sugerindo que esses indivíduos poderiam ser “agentes do caos” infiltrados.
A tese ganhou ainda mais relevância com a publicação de imagens que mostram pessoas agindo de forma isolada, mas com um impacto desproporcional, incitando a destruição e criando um cenário de confusão. Manifestantes pacíficos teriam sido levados ao ceio de um clima de vandalismo por indivíduos que não representavam os interesses do movimento, mas buscavam desacreditá-lo.
Além disso, a omissão das forças de segurança durante os atos de vandalismo levantou suspeitas sobre uma possível conivência ou até mesmo uma estratégia premeditada. Imagens de câmeras de segurança mostram que a Força Nacional, subordinada ao Ministério da Justiça, permaneceu inerte por horas, mesmo diante da destruição em curso. Essa inação foi interpretada por alguns como um sinal de que o governo federal poderia ter se omitido ou até mesmo permitido o caos para justificar medidas repressivas posteriores.
A analogia com o “estouro da boiada” é particularmente relevante. Assim como uma manada de bois pode ser levada ao descontrole por um pequeno estímulo, os manifestantes pacíficos foram arrastados por ações pontuais de vandalismo, criando uma narrativa de que todo o movimento era violento. Essa estratégia teve como objetivo deslegitimar as reivindicações dos manifestantes e justificar a criminalização do movimento como um todo, transformando-o em tentativa de golpe de estado e de abolição do estado democrático de direito. Vargas regozijaria ao observar o desenrolar das cenas.
A história do Plano Cohen nos ensina que a manipulação de fatos e a criação de narrativas falsas podem ter consequências devastadoras para a democracia. O Estado Novo, instaurado com base em uma fraude, deixou um legado de autoritarismo que ainda ressoa na política brasileira. Em 1937 a Voz do Brasil foi usada para manipular a opinião pública propagando desinformação. Nas décadas posteriores, meios de comunicação usaram suas concessões para desinformar e deformar a opinião pública, utilizando como estratégia: ‘pague pela informação que te interessa ou te ofereceremos gratuitamente a informação que nos interessa’.
Os eventos de 8 de janeiro de 2023, embora distintos em seu contexto, seguem uma lógica semelhante. A utilização de uma narrativa de “ameaça à democracia” para justificar medidas autoritárias que abrem caminho para a instauração de um regime ditatorial. Cabe à sociedade brasileira estar atenta e resistir a qualquer tentativa de erosão das liberdades democráticas, que passa pela regulamentação das redes sociais e pelo controle estatal da liberdade de expressão e de manifestação, para que a história não se repita, da mesma forma que fora denunciada por Carlos Lacerda em 1953, nos estertores do governo Vargas:
“Meus amigos, nós partimos para o que parecia ser uma cruzada pela liberdade de imprensa e acabou sendo uma cruzada pela libertação nacional. E isso não se deu por acaso, é que quando se quer envenenar uma nação, começa-se por envenenar as fontes do conhecimento público. Começa-se por envenenar as fontes de informação, sem as quais o povo não sabe o que se passa, ou pior ainda, só sabe errado aquilo que se passa certo. É através da corrupção da imprensa, é através da intimidação da imprensa que se acaba por corromper e intimidar a própria opinião do povo. O que se montou no Brasil não foi apenas um negócio para um grupo de afiliados do poder, não foi somente um negócio feito à custa da miséria e do esfomeamento do povo. Foi também um negócio para destruir no povo a confiança na democracia foi um negócio feito para fazer o povo descrer de si mesmo. Para fazer com que o povo pensasse que de nada valia protestar em praça pública porque os homens do poder pensariam por ele e por ele agiriam desde o começo até o fim”.
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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 51 edição de Fevereiro de 2025 – ISSN 2764-3867
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